CARTA AO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

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AO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
O movimento negro vem incansavelmente exigindo que ações e medidas sejam
tomadas pela ordem jurídica nacional e internacional como forma de proteger e
promover a dignidade da pessoa humana, a igualdade de todos e todas e de sua
cultura milenar. Assim, documentos como a Constituição Federal (1988), a
Convenção Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial (1969), a
Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais
(2006) e o Estatuto da Igualdade Racial (2010) vinculam a atuação do Estado
Brasileiro e suas instituições no sentido de limitar o poder dos mesmos quando
atentam contra a dignidade do povo brasileiro, em especial o negro, e de guiá-los
quando há a necessidade de orientação para promover ações que revertam o racismo
estrutural e institucional resultantes de crimes de lesa-humanidade praticados por
este país, tais como o colonialismo, a escravidão e o racismo. É importante destacar
que esses crimes foram reconhecidos pelo Estado Brasileiro na III Conferência
Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas
Correlatas de Intolerância, promovida pela ONU e realizada em 2001 na cidade de
Durban, África do Sul.
Se por um lado nossas reivindicações contribuíram para transformar nossas
lutas em marcos jurídicos civilizacionais, por outro lado nós sabemos muito bem
que elas são apenas o ponto de partida para acabar com o racismo. Embora o estado
brasileiro esteja comprometido com a ordem jurídica internacional de direitos
humanos, nós não podemos nos esquecer que o mesmo já foi julgado perante a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (nos casos de Simone André Diniz
e Wallace de Almeida) e pelo Comitê Nacional das Nações Unidas para a
Eliminação das Discriminações contra as Mulheres (no caso de Alyne Pimentel).
Todos esses casos explicam como o racismo estrutural e interseccional funciona
em nosso país, principalmente quando está relacionado à omissão das autoridades
governamentais.
Além disso, pode-se pontuar que o Brasil está ciente do genocídio da população
negra, o qual está estruturado pelas práticas dos agentes do estado e grupos militares
que matam pessoas negras nas periferias como se não tivessem direito à dignidade.
Esse fato é tristemente confirmado pelo Mapa da Violência em 2016 e pelo Atlas
da Violência em 2017. Nesse sentido, quando nós verificamos que o governo
federal brasileiro é maioritariamente composto por ministros brancos, o que
significa que poucos negros estão nos altos escalões do governo, objetivamente
vemos a reprodução de práticas discriminatórias contra os afro-brasileiros, o
enaltecimento da cultura branca como a única forma positiva de desenvolver o país
e, consequentemente, o aviltamento da cultura negra que juntos aprofundam mais
e mais o racismo estrutural. Da perspectiva da nossa diversa negritude, nós,
intelectuais negros, nos posicionamos contra o governo supremacista branco e
lutamos, juntamente com as memórias de nossos ancestrais, para termos nossos
pensamentos e valores respeitados, considerados fundamentais para o processo
civilizatório desta nação.
Nós endereçamos esta carta à pessoa responsável por essa administração. Nós
queremos lembrá-lo, bem como lembrar a todos, o significado da representação em
espaços de poder. Representação nos é crucial porque está conectada ao projeto de
emancipação racial que nós negros reivindicamos ao longo dos anos, independente
do número de tentativas de nos silenciar. Nós estamos lembrando o projeto
apresentado por Luiz Gama que trata da emancipação de nossos ancestrais. Nós
estamos falando sobre Lélia Gonzalez e a emancipação das mulheres negras. Nós
estamos pontuando Abdias do Nascimento e seu projeto de combater o genocídio
perpetrado contra a população negra. Logo, a identidade racial de Sergio Camargo,
como homem negro, não nos importa porque sua posição consolida o poder racial
branco deste governo. Na medida em que o racismo é estrutural e institucional em
nossa sociedade, isto é, não precisa de intenção para se manifestar, a mudança que
nós queremos fazer nesta sociedade requer, além das reivindicações e do repúdio
moral do racismo, promoções, tomadas de decisão, adoção de novas práticas e
participação ativa de pessoas negras e não negras em ações antirracistas. Isso pode
e deve ser um compromisso de toda a população brasileira.
Nós todos sabemos também que os racismos têm diferentes fundamentos,
formas, modalidades, conteúdos, matizes, desdobramentos e impactos no passado
e no presente das sociedades. Desse modo, é importante sublinhar que, em nosso
país, o racismo é um crime inafiançável e imprescritível, de acordo com a
constituição de 1988, bem como uma prática inaceitável em qualquer sociedade
contemporânea, uma vez que é entendido não somente como desigualdade em
termos de acesso a bens e valores presumidos na Constituição, mas também como
algo que prejudica a dignidade do ser humano. Portanto, não é possível aceitar os
intolerantes e não democráticos que querem rasgar a nossa Constituição e os seus
valores éticos e civilizacionais. Não há lugar aqui para aqueles que querem trazer
caos e medo ao nosso país com a chancela do poder executivo. Nós devemos pôr
fim aos prejuízos em curso à nossa Constituição.
Tendo dito isso, nós destacamos que esta carta denuncia os atos ilegais
cometidos pela pessoa no comando da Fundação Cultural Palmares e exigimos
investigação, bem como punição severa por suas irresponsabilidades. A Fundação
Cultural Palmares, instituição governamental e pública, criada em 22 de agosto de
1988, como consta na lei nº 7.688, foi fundada pelo governo federal com o
propósito de promover e preservar os valores conectados à negritude, construir um
programa de ação afirmativa consistente e apoiar políticas públicas antirracistas.
Os objetivos da Fundação Cultural Palmares são o reconhecimento e apreciação da
grande contribuição da população negra brasileira ao país, dando conta das
verdadeiras demandas da sociedade civil nacional, bem como de suas instituições,
associações e especialmente do Movimento Negro brasileiro. Por exemplo, a
Fundação Cultural Palmares tinha uma parceria com o Ministério da Educação para
formular ações e políticas públicas em favor da cultura afro-brasileira e para
promover a diversidade religiosa no intuito de superar a desigualdade educacional
na escolaridade média entre estudantes negros e não-negros. Ela também é
responsável pelo cumprimento da lei 10639/2003, que estabelece a obrigatoriedade
legal de ensinar História e Cultura Africana e Afro-Brasileira em diferentes níveis
educacionais no Brasil.
Além disso, sendo uma unidade da administração pública, a Fundação Cultural
Palmares não pertence a qualquer governo de plantão. Não pode ser administrada
a bel-prazer nem ser um espaço para amadorismo espontâneo, tampouco para um
diletantismo militante barulhento sobre algo que não se sabe, mas se ouviu falar.
Em instituições estatais, não há espaço para a falta de compromisso em administrálas,

operá-las, geri-las e realizar políticas públicas que estão de acordo com os

interesses da população brasileira, especialmente os negros.
A Fundação Cultural Palmares emitiu uma nota em que afirma as ações
positivas que tem desenvolvido. Entretanto, os fatos demonstram que elas são falsas
porque seu presidente, Sr. Sérgio Nascimento de Camargo, desqualifica o
Movimento Negro brasileiro o tempo todo, caracterizando-o como “escória
maldita” e frequentemente expressa seu desejo de revogar a comemoração do Dia
da Consciência Negra. Além disso, ele usualmente minimiza as questões
relacionadas ao genocídio da população negra dizendo “Todas as vidas importam”.
Seu comportamento prejudica os sentidos e objetivos dos movimentos antirracistas
locais e globais que agora, após a morte de George Floyd, estão gritando para o
mundo todo ouvir: “Vidas negras importam”.
Atitudes como as tomadas pelo presidente da Fundação Cultural Palmares são
inaceitáveis e criminosas, uma vez que destroem o patrimônio e os valores
históricos, sociais, econômicos, científicos, éticos e civilizacionais resultantes das
influências africanas na formação da sociedade brasileira. O modus operandi
racista do presidente atual da Fundação Cultural Palmares e seu corpo diretivo fere
o princípio constitucional de moralidade administrativa. Ainda assim, o presidente
da Fundação busca reverter a direção da lógica constitucional de preservação da
cultura africana e afro-brasileira. O antirracismo deveria guiar as ações da
Fundação, não o oposto, como temos visto com as práticas racistas em curso da
desonestidade administrativa perpetrada contra a memória, o legado e o patrimônio
cultural da população brasileira. Quando expõe materiais para difamar e injuriar o
grande líder negro deste país, Zumbi dos Palmares, também reconhecido por
diferentes instituições científicas e escolares e por diversas esferas de poder, a
Fundação subverte e deturpa a História, principalmente porque ignora o conteúdo
relevante divulgado por esses espaços que demonstram uma ampla gama de
bibliografia científica e acadêmica relacionada à luta por liberdade, por acesso à
terra, por dignidade do ser humano e pelo fim da escravidão.
Vale a pena lembrar que desde 1988 muitos administradores geriram essa
instituição, mas nenhum cometeu crimes contra o legado nacional nem agiu contra
a missão institucional, política ou constitucional. O presidente atual tem colaborado
para o empoderamento das ideologias supremacistas brancas e o aprofundamento
das desigualdades entre negros e brancos, desigualdades que são os resultados do
racismo secular que ainda persiste no nosso país. Portanto, é inaceitável qualquer
hipótese de permanência dessa direção. Nós não podemos aceitar as atividades em
curso da Fundação Cultural Palmares, nem o seu presidente atual, Sr. Sérgio
Nascimento de Camargo. Nós exigimos que a instituição volte ao seu objetivo e
missão, que é trabalhar para a promoção da política cultural de igualdade e inclusão
que contribui para a valorização da História e a preservação das manifestações
culturais, científicas e artísticas da população negra como patrimônio nacional.
Todas as ações negativas contra o Movimento Negro brasileiro feitas pela
Fundação, como pontuado antes, merecem o nosso profundo repúdio. Nós exigimos
investigações com transparência e responsabilidade sobre as ações do presidente da
Fundação Cultural Palmares. Nós queremos sua imediata renúncia porque, em um
curto período de tempo, seus passos demonstraram um nítido projeto para destruir
essa instituição federal que foi construída para valorizar o patrimônio afrobrasileiro.

Essas atitudes e práticas racistas são inaceitáveis pelo Movimento Social
Negro, pelos intelectuais negros brasileiros e, principalmente, pela população negra
nos mais variados setores da sociedade brasileira cujas memórias não podem ser
eliminadas pelos agentes do estado.

Signatários
Abrahão de Oliveira Santos – UFF
Acácio S. Almeida Santos – UFABC
Acauam Silvério de Oliveira – UPE
Acildo Leite da Silva. NEAB- UFMA
Adilson Pereira dos Santos NEABI/UFOP
Alexandra Lima da Silva – UERJ
Alexandre Filordi de Carvalho – UNIFESP
Alexsandro Eleotério Pereira de Souza – UNESPAR
Álvaro Roberto Pires – UFMA
Amauri Mendes Pereira – UFRRJ
Amilcar Pereira – UFRJ
Ana Beatriz Sousa Gomes (UFPI)
Ana Cristina Juvenal da Cruz -NEAB/UFSCar
Ana Lucia Pereira – UFT
Andréa Gomes da Silva- UESB
Ângela Maria de Sousa Lima – UEL
Antônio Carlos (Billy) Malachias – Pesquisador do Centro de Estudos Periféricos
– UNIFESP
Antônio Donizeti Fernandes – NEABI/UENP “Beatriz Nascimento”
Antonio Jeferson Barreto Xavier (PPGEDU/UFRGS)
Arlete Ramos dos Santos – UESB
Benedito Eugenio – UESB
Carlos Alberto Medeiros – UFRJ
Carlos Benedito Rodrigue da Silva – UFMA
Caroline Guilherme – UFRJ/Macaé
Caroline Jango – IFSP
Cauê Gomes Flor – UNESP
Cidinalva Silva Câmara Neris – NIESAFRO/UFMA
Claudete de Sousa Nogueira – UNESP
Cláudio Melo – UESPI – Teresina.
Cleber Santos Vieira – UNIFESP e CONNEABs/ABPN
Cleriston Izidro dos Anjos – Ufal
Dagoberto José Fonseca – UNESP
Debora Cristina Jeffrey – Unicamp
Débora de Souza Santos – UNICAMP
Dennis de Oliveira – USPflavia
Edemir de Carvalho – UNESP
Edmacy Quirina de Souza UESB
Elisiane Sousa de Andrade – Semed/Manaus
Ellen Gonzaga Lima Souza – UFLA
Erlando da Silva Rêses – UnB
Eunice Almeida da Silva – USP
Euza Raquel de Sousa IFRN
Eva Aparecida da Silva – UNESP
Fábia Holanda de Brito- NEABI/ IFMA- campus São José de Ribamar
Fabiana de Oliveira – UNIFAL-MG
Fátima Lima – UFRJ/ CEFET/RJ
Fernando Antônio Santos Coelho – UNICAMP
Flavia Rios – UFF
Francisco Cruz do Nascimento – SME Ibirapitanga
Frei David Santos OFM (Ordem dos Frades Menores) Diretor Executivo da
EDUCAFRO Brasil
Getúlio Mendes dos Santos – UNESP
Gilberto Alexandre Sobrinho – UNICAMP
Gilson Rodrigues – IFRN – Campus Pau dos Ferros.
Guilherme dos Santos Claudino. IFSP – Câmpus Avaré
Hédio da Silva Jr.- Coordenador Executivo do IDAFRO
Iraneide Soares – UESPI
Isadora Brandão – Defensora Pública de SP
Ivan Cláudio Pereira Siqueira – USP
Izanete Marques Souza – IF Baiano
Jamily Souza – Quilombo Urbano do Barranco de São Benedito – Manaus
Janine Couto Cruz Macedo – IF Baiano
Januário Garcia – Fotógrafo
João Batista de Jesus Félix – UFT
João Bosco da Silva, economista, PCdoB
João Carlos Nogueira – Sociólogo, Diretor do Observatório de Políticas e
Pesquisa Reafro/UFSC e Núcleo de Estudos Negros – NEN.
José Carlos Gomes da Silva – UNIFESP
José Nilton de Almeida – UFRPE
José Valdir Jesus de Santana – UESB
Juarez Tadeu de Paula Xavier – UNESP
Juciaria Barbosa dos Santos – UESC
Juliana Cristina Salvadori – UNEB
Júlio César de Souza Tavares – UFF
Kabengele Munanga – USP
Kátia Régis – UFMA
Leci Brandão – Cantora, compositora e deputada estadual – PCdoB/SP
Letícia Santos Azevedo – UESB)
Lígia Fonseca Ferreira – UNIFESP
Lino João de Oliveira Neves – Antropólogo,
Lisiane De Cesaro – IFC
Luana Silva de Souza Flor – SEESP
Lúcia Helena Oliveira Silva – UNESP
Luís Antônio Francisco de Souza – UNESP
Luiz Antônio Nascimento de Souza – UFAM
Luiz Otávio Ferreira – Fundação Oswaldo Cruz e UERJ
Luiza Rodrigues de Oliveira – IPSI/UFF
Manoel Gonçalves dos Santos – UFSCar
Marcelo Barbosa Santos – ENUFF
Márcio Macedo – FGV
Maria Alice Rezende Gonçalves – UERJ
Maria Aparecida Silva Bento – Diretora Executiva – CEERT
Maria Nilza Silva – UEL
Maria Teresa Pedrosa Silva Clerici -Unicamp
Maria Valéria Barbosa – UNESP
Maria Walburga dos Santros – UFSCAR
Mariana dos Reis – Instituto Benjamin Constant – RJ
Mário Augusto Medeiros da Silva – Sociólogo e escritor, docente da Unicamp.
Mateus Melo da Silva – IF Baiano
Matheus Gato – UNICAMP
Mônica Abrantes Galindo Oliveira – UNESP
Nilma Lino Gomes – UFMG
Orlando Silva – Deputado Federal – PCdoB/SP
Patrícia Alves de Matos Xavier – Ialorixá do Ilê Axé Iya Mi Agbá – Presidente do
Instituto Omolará Brasil
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – UFSCAR
Rafaela Melo Magalhães – IFBAIANO
Ramon Alcântara. NEAB UFMA,
Regina de Jesus Medeiros Cientista Social – Artesã – Associação Nossa Senhora
da Conceição, Manaus
Ricardo Alexino Ferreira – USP
Rita Montezana – UFF
Rosana Fernandes de Oliveira Frutuoso – UFCG
Rosana Monteiro – UFSCAR
Rosangela Malachias – UERJ-FEBF
Sales Augusto dos Santos – INCTI/UnB.
Sidnei Barreto Nogueira – Instituto Livre de Estudos Avançados em Religiões
Afro-brasileiras
Simone Andrade Gualberto – UESB
Soraya Mendes Rodrigues Adorno – UESB
Thaís Magalhães – UNESP
Tiago Vieira Rodrigues Dumont – UNESP
Tiago Vinícius André dos Santos – UEMS
Valter Roberto Silvério – UFSCAR

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